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O Mito da Inteligência Emocional

O professor de Harvard, Daniel Goleman, é considerado o pai da “inteligência emocional”, conceito elaborado na década de 90 que ganhou notoriedade entre psicólogos, gestores de RH e líderes em geral. Trata-se de um trabalho de retórica que induz seus leitores a acreditar numa figura de linguagem que pouco ajuda a liderar melhor, mas que encanta os ouvidos e corações desavisados. A obra é uma confusão de termos, um mapa neologístico que não traduz a realidade sobre o desenvolvimento das pessoas.

O que é inteligência? Surpreendentemente, o autor começa citando Aristóteles, mas parece que não o leu por completo ou não o entendeu. Para o estagirita, inteligência é a última das cinco virtudes intelectuais: arte, ciência, prudência, sabedoria e inteligência. Inteligência, do grego nous, significa a intuição racional dos primeiros princípios ou verdades auto evidentes. Por exemplo: o princípio de identidade: A=A, o princípio de não-contradição: é impossível ser e não ser ao mesmo tempo, o princípio do terceiro excluso: as proposição são afirmativas ou negativas. Não é necessário provar que Maria é igual a Maria, ou que Maria não pode ser Maria e ao mesmo tempo Marta, pois a inteligência é capaz de captar a verdade. Goleman infere, sem muita clareza, que inteligência é o quociente intelectual, ou QI, isto é, o desempenho cognitivo num teste em comparação com outras pessoas. É verdade que a inteligência possui instrumentos como o raciocínio, a memória e a emoção, mas o autor confunde a essência da inteligência humana com seus instrumentos, trocando o artista pelo pincel. Se assim for, como já revelaram as pesquisas, alguns primatas são “inteligentes” por possuir memória e raciocínios mais rápidos, algumas crianças com necessidades especiais são “prodígios” por fazerem cálculos complexos, e o computador é superior a nós, daí a ideia de “inteligência artificial”. O macaco, o autista e o computador podem ser melhores nos instrumentos, mas não na captação da verdade. Já dizia Santo Tomás de Aquino: verdade é a adequação da coisa e do intelecto.

O que é emoção? Veja como o autor a descreve: “um sentimento e seus pensamentos distintos, estados psicológicos e biológicos, uma gama de tendências para agir”. Ele também relata a significação do Oxford English Dictionary: “qualquer agitação ou perturbação da mente, sentimento, paixão; qualquer estado mental veemente ou excitado”. De outro modo, Aristóteles define como os sentimentos que acompanham o prazer ou a dor, tais como ira, medo, confiança, inveja, júbilo, amor, ódio, saudade, ciúme, compaixão. Na Enciclopédia Britânica a palavra emoção deriva do verbo latino emovere, que significa ‘mover, deslocar, abalar’. Em suma, sejam quais forem as emoções, elas também são instrumentos, uma vez que, assim como o raciocínio, orientam nossas ações, nos induzem a mover. Ora, é exatamente sobre isso que trata o livro Ética, que significa caráter ou hábito, em que se revela a natureza das disposições humanas mediante o prazer e a dor, ou do falso e do verdadeiro, isto é, explica porque as pessoas fazem o que fazem a despeito da emoção ou razão, em suma, como elas podem obter o bem e o verdadeiro, alvo de todas as ações humanas. Quando uma pessoa age bem, possui reta vontade, dizemos que é virtuoso moralmente (moral é o termo latino para o grego ética). Quando a pessoa usa a reta razão, é virtuosa intelectualmente. Portanto, existem dois tipos de virtudes: as morais e intelectuais. A primeira busca o bem e a segunda o verdadeiro. Aristóteles explica que há uma virtude que une razão e emoção, como uma porta que se abre do espírito para o corpo, do eu metafísico para o eu físico,  como numa conexão invisível entre “cérebro e coração”, fazendo a ponte entre o racional e o emocional. A verdadeira “inteligência emocional” já existia, mas com outro nome, é a mãe de todas as virtudes: a Prudência ou Sabedoria Prática

Aristóteles diz que a “prudência é, portanto, necessariamente, uma capacidade racional genuína que diz respeito à ação relativa aos bens humanos”. É o mesmo que dizer que só quem é prudente pode ser justo, corajoso e temperado; e que o homem bom é bom em virtude da sua prudência, logo, é a razão daquilo que torna virtudes as outras virtudes. Ela se dá na prática da seguinte forma: reflexão, juízo e decisão. As duas primeiras de caráter cognoscitivo e a terceira diretiva. O autor Martín Echevarría diz em seu livro A Práxis da Psicologia que “é na psicologia americana dos últimos anos que o tema das virtudes começa a converter-se em tema de preocupação sistemática. Um exemplo é o conceito de ‘inteligência emocional’ que não é outra coisa senão a virtude da prudência”. Goleman cita no início do capítulo cinco a quarta virtude cardeal: a temperança. 

A capacidade de manter o autocontrole, de supor o turbilhão emocional que o acaso nos impõe e de não se tornar um “escravo da paixão”, tem sido considerado, desde Platão, como uma virtude. Na Grécia clássica, esse atributo era denominado sophrosyne, “precaução e inteligência na condução da própria vida; equilíbrio e sabedoria”. Para os romanos e para a antiga Igreja cristã isso significava temperantia, temperança, contenção de excessos.

 

Esse parágrafo basta para entender a displicência de Goleman quanto ao tema das emoções e virtudes, ou, por outro lado, suas intenções. Primeiro, a Igreja antiga, medieval e moderna é a mesma, e considerando a temperança como tal. Ademais, a temperança não é apenas uma questão de excessos, pois todas as virtudes lidam com excessos e deficiências, os vícios. É como se ele jogasse na lata do lixo toda a base em que repousa o conhecimento ocidental em troca de uma figura de linguagem: que existe uma inteligência da emoção. Ao pé da letra, inteligência emocional deveria significar a capacidade de apreender a verdade de uma emoção, seja a própria ou do outro, isso pode até acontecer, mas seria muito difícil de concluir a verdade da emoção. Mas o pior não é isso, em seu livro Primal Leadership, ele parte da premissa que o papel fundamental dos líderes é promover bons sentimentos em seus liderados. Daí eu pergunto: quais bons sentimentos? Todos? Ainda que a emoção seja ruim, o que a pessoa faz é que determina se a decisão foi boa. Pode-se ter sentimentos ruins e ações boas ou sentimentos bons e ações ruins. Imprimir bons sentimentos nas pessoas não garante que as ações serão boas, pois o sentimento é apenas instrumento que, como vimos, pode falhar. Qualquer pessoa é capaz de julgar que é impossível agradar a todos. Se um líder realmente acredita nesta premissa, será um líder imprudente: um pai que faz tudo para o filho sentir-se bem, um gerente que faz tudo para o funcionário sentir-se bem, um técnico que faz tudo para seus atletas sentirem-se bem. Ora, essa é a fórmula do fracasso, de um vício, e quem já foi demagogo o suficiente para acreditar nela, sabe que pode acabar como bode expiatório do grupo, como bem mostra a história. Não me surpreende a quantidade de novos líderes que não suportam o desafio de seu chamado, que padecem por pouco, afinal, foram educados a sentirem-se bem.

Na capa do livro está o subtítulo: A teoria inovadora que redefine o que é ser inteligente. Ele não esconde suas intenções. Precisamos lembrar que nem tudo que é bom é novo e nem tudo que é novo é bom. Ele é um mestre da confusão, pois não percebe que elenca as cinco habilidades da inteligência emocional – autoconhecimento, autocontrole, motivação, empatia e destreza social – com nomes diferentes de virtudes já explicadas pelos antigos. Confira o quadro de neologismos:

 

Nova Ideia de Goleman Antiga Ideia de Aristóteles
Autoconhecimento: habilidade de reconhecer e entender o próprio humor, emoção e motivação e seu efeito em outras pessoas. Prudência
Autocontrole: habilidade de controlar e redirecionar humor e impulsos. Temperança
Motivação: paixão por trabalhar por razões além do dinheiro e status.  Magnanimidade
Empatia: habilidade de tratar pessoas de acordo com suas reações emocionais.  Brandura
Destreza Social: proficiência em gerenciar relacionamento e construir network. Amistosidade

 

Palavras diferentes fingindo um novo significado. Qual a melhor maneira de identificar a confusão que o autor elaborou? Pergunte às pessoas o que vem a ser a “inteligência emocional” e como ela funciona na prática. Você vai ouvir de tudo, menos o que o autor ensina.

Toda e qualquer boa decisão tomada é prudente, ainda que as emoções não sejam convergentes a ela. A prudência é o verdadeiro alvo de um líder, pois é a virtude mãe de todas as outras, ou como dizia Agostinho: é através dela que a alma conhece o que deve fazer. Goleman é só mais um psicólogo moderno que surfou no enorme analfabetismo funcional atual. A minha conclusão é essa: a  “inteligência emocional” de Goleman é uma esquizofrenia das virtudes.

 

BIBLIOGRAFIA

GOLEMAN, Daniel. Inteligência Emocional. 1ª edição. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

GOLEMAN, Daniel. Primal Leadership. 1ª edição. Boston, Massachussets: HBR, 2013.

HARVARD, Business Review. Desafios da Liderança: 10 Leituras Essenciais. 1ª edição. Rio de Janeiro: Sextante, 2020.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 4ª edição. São Paulo: Edipro, 2018.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 1ª edição. São Paulo: Madamu, 2020.

MAGNO, Alberto. Tratado Sobre a Prudência. 1ª edição. São Paulo: Paulus, 2017.

BBC Vídeo. Chimps Vs Human. (https://youtu.be/zsXP8qeFF6A)

 

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